Todos os
medos voltam à Argentina
Há muitas décadas, cada movimento exótico do dólar
atrai imediatamente a atenção de todos os atores sociais
Ser argentino, entre outras coisas, é ter medo de que
algo terrível aconteça em qualquer dia, ao virar a esquina. Todos os argentinos
maiores de 50 anos foram contemporâneos e sobreviventes de cinco crises
econômicas dramáticas que transformaram suas vidas e deixaram uma marca
indelével de alerta e temor. E os que são mais novos receberam, quase por
transmissão genética, a memória emotiva desses traumas.
Pessoas em frente a uma casa de
câmbio em Buenos Aires. MARCOS BRINDICCI REUTERS
- Argentina faz manobra desesperada com juros a 40% para conter dólar e Brasil teme contágio
- Quinta-feira de pressão para o peso argentino, que perde quase 9% do seu valor
- Argentina pede ajuda ao FMI após desvalorização do peso
Por isso,
nessa semana, quando o peso argentino voltou a
afundar, quando sua desvalorização foi a mais alta do continente,
quando o Banco Central precisou vender 6 bilhões de dólares (21 bilhões de
reais) de reservas sem conseguir conter o aumento do dólar, quando a revista Forbes
colocava na manchete: “É hora de fugir rapidamente da Argentina”, todos os
medos voltaram a se instalar no coração dos habitantes do país. E o medo, sabemos,
não é um componente que ajuda muito a superar uma situação como essa.
O
desencadeador da tempestade foi a decisão do Banco Central dos EUA de subir a
taxa de bônus do Tesouro norte-americano. Isso causou uma fuga de fundos do
mundo inteiro em direção a Wall Street. Os principais
investidores se livraram de suas posses em moeda estrangeira e muitas delas
desvalorizaram. Mas nenhuma como a moeda da Argentina: o peso caiu aproximadamente
14% em poucos dias.
O castigo
extra ocorre por duas razões. Uma delas é conjuntural: no mesmo momento em que
a taxa dos bônus norte-americanos subia, a Argentina aplicava um imposto aos
investimentos estrangeiros. Os jovens de Wall Street não gostam disso, como
pudemos ver. A segunda causa do castigo extra é estrutural. A Argentina tem
enormes déficits fiscais e comerciais e os financia com dívida. Sua
vulnerabilidade, portanto, é maior do que a dos outros países da região. A
saída de capitais foi, então, torrencial. E o peso desvalorizou violentamente.
O medo,
essa típica reação argentina, causa muitas vezes uma profecia autocumprida. Há
muitas décadas, cada movimento exótico do dólar atrai imediatamente a atenção
de todos os atores sociais. Quando o dólar sobe, todos sabem que todos
comprarão dólares para precaverem-se de novos aumentos, e então todos compram
dólares e provocam esse aumento: isso se chama comportamento em manada. O que
poderia ser um problema menor chega então a níveis irracionais.
Mas além
disso, os formadores de preço reagem e impulsionam a inflação além do esperado
porque especulam em meio à desordem e porque é a maneira histórica que
encontraram para se precaver em meio à tempestade. Todos perdem nesse jogo, mas
o que fica de fora acredita que perde mais e então também entra. Por isso, as
consequências de uma desvalorização são piores na Argentina do que nos outros
países da terra. Nessa semana o Brasil, o Chile e o Uruguai tiveram
desvalorizações. Ninguém teme que nesses lugares os preços sejam reajustados.
Na Argentina, por outro lado, é um fato.
Saída de
capitais, respingo inflacionário, aumento de juros para conter os danos,
efeitos recessivos de alguma magnitude como consequência dos juros astronômicos
e medo porque tudo isso ocorre ao mesmo tempo, e porque o medo chama medo. Com
as coisas nesse ponto, a inquietação mais frequente em Buenos Aires, nesses
dias, se traduz em uma pergunta que surpreenderia qualquer habitante de outro
país: “Cara, qual é o valor do dólar?”.
O Governo
afirma que é uma tempestade passageira. (Que outra coisa um Governo poderia
dizer?) e argumenta que o estado da economia real, a relação entre a dívida e o
que se produz no país, a quantidade de reservas que se mantêm no Banco Central,
tudo isso finalmente irá se impor sobre movimentos disruptivos de curto prazo e
sobre esse medo tão tipicamente argentino.
Talvez seja
assim.
De fato, na
sexta-feira o aumento diminuiu levemente.
Mas nesse
meio tempo, a Argentina perdeu 7 bilhões de dólares (24 bilhões de reais), a
inflação, que foi de 25% em 2017, voltará a subir, e o crescimento da economia
será prejudicado. O presidente Mauricio Macri vem aplicando um programa
econômico que pretende combinar gradualmente um crescimento leve com uma
diminuição progressiva da inflação com um aumento de preços bem radical. Essa
rota sinuosa sofreu um duro golpe com o aumento dessa semana. Tudo será, agora,
mais complicado. E a maioria dos argentinos, como acontece após cada
desvalorização brusca, será um pouco mais pobre. Isso acontece em um momento em
que, após a surpreendente vitória eleitoral de outubro, o Governo não para de
perder apoio. Macri ainda conserva um respaldo significativo, mas é o mais
baixo de todo o seu mandato. A última coisa que ele desejaria era ler essa
manchete da Forbes: “É hora de fugir rapidamente da Argentina”.
Os capitais
podem voar. Os funcionários podem se demitir. Mas os moradores de um país não
têm plano B e, por experiência de duas gerações, quando o dólar se movimenta de
maneira brusca, o coração dá um salto, e os medos voltam a se instalar. Como se
fosse um povo que vive ao lado de um rio ou em uma região sísmica: sabe
reconhecer os indícios de uma nova desgraça, conhece seus efeitos devastadores,
mas não tem como evitá-la. Resta a ele, talvez, se for religioso, rezar. Por
isso, quando o dólar cai, mesmo que seja pouco, como aconteceu na quinta-feira,
a calma volta. Mas depois do acontecido nessa semana, será preciso muito tempo
para que o medo vá embora.
Viver assim
não é viver, pode-se dizer. De fato, se alguém quer entender por que, nas
últimas décadas, a Argentina ficou para trás em relação a muitos países da
região, tem nessa dinâmica uma boa explicação.
Macri
assumiu com a promessa de que colocaria ponto final nesses intermináveis altos
e baixos.
Está longe
de conseguir.
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